O artigo 19, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), define que “Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.”Da análise fria da norma antes referida, extrai-se a certeza de que tanto a criança quanto o adolescente tem o direito estatutário de ser criado e educado no seio da sua família, mesmo que ausentes os pais, mas presentes parentes mais próximos, tais como irmãos, avós, tios e primos. No entanto, a prática tem demonstrado que na maioria dos casos de ausência dos pais, as crianças ou adolescentes em estado de abandono recebem cuidados especiais dos avós, que passam a exercer o dever de sustento, guarda e educação dos netos, tanto porque são raras as intervenções de irmãos, tios e primos objetivando o amparo afetivo e legal destas criaturas em situação de desprezo e de solidão.
Ao instituir a figura da família substituta, o legislador estatutário deu um enfoque mais moderno e objetivo ao assunto, adequando-o à doutrina da proteção integral apregoada pela ONU, estabelecendo três tipos de famílias substitutas, aquelas bem definidas no Direito da Criança e do Adolescente, ou seja, a colocação mediante Guarda, Tutela e Adoção, esta nas modalidades de adoção nacional e adoção internacional. Óbvio que quando nos referimos aos procedimentos de guarda e tutela, pressupõe-se a existência de parentes próximos, como já comentado anteriormente, máxime porque tais tipos visam, principalmente, a proteção à personalidade humana da criança ou do adolescente (guarda) e a gestão de interesses e bens patrimoniais (tutela).Ressalte-se, porém, que o grande problema que aflige os operadores do direito na área da Infância e da Juventude, mais especificamente no capítulo da família substituta, é aquele que se refere às crianças e adolescentes institucionalizados à espera de uma família substituta, aquelas chamadas disponíveis para adoção.
Como é sabido, instituições de caridade (entidades de atendimento) existem em nosso país há séculos, sob as mais diversas atividades. No Estatuto da Criança e do Adolescente, a matéria está disciplinada a partir do artigo 90, destacando-se o parágrafo único do referido artigo, o qual exige que as entidades governamentais e não governamentais procedam à inscrição dos seus programas junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e, mais ainda, o texto dos artigos 91, 92 e 93 da mesma Lei, devendo merecer atenção especial os princípios ditados pelo artigo 92, para as entidades que desenvolvam programas de abrigo. Entre esses, merecem atenção especial os mencionados nos itens I e II do artigo citado, aqueles que orientam no sentido da “preservação dos vínculos familiares” e na “integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem”.À luz do Estatuto vê-se, portanto, que as entidades de atendimento devem submeter seus programas aos Conselhos Municipais, através dos quais devem estabelecer os regimes de atendimento e o cumprimento dos princípios do artigo 92. Porém, na prática, não é o que ocorre.
Não se sabe exatamente se por força da nossa cultura, do nosso padrão de comportamento ou por ignorância do texto legal, grande parte das entidades de atendimento não cumprem as exigências legais. É comum verificar que a maioria delas não inscreveu seus programas nos Conselhos Municipais e atuam de forma desordenada na atividade a que se propuseram. Existem dirigentes de entidades que consideram a institucionalização a solução de vida para as crianças e adolescentes sem família, carentes de afetividade. Outras, arbitrária e covardemente, usam as crianças e mesmo adolescentes abrigados como meio de angariar recursos financeiros e materiais para a manutenção das suas atividades, desprezando o ensinamento de que a institucionalização deve ser encarada de forma temporária e não permanente. A própria Lei define que, esgotados os recursos de manutenção na família de origem, a solução é a integração em família substituta. E essa integração alcança também as crianças institucionalizadas e que foram abandonadas pelos pais ou parentes e não têm nenhuma referência familiar.
É temerário dizer que ainda se procede desta maneira por força da nossa cultura, mesmo porque o Estatuto da Criança e do Adolescente já vigora há mais de dez anos e não há nada que justifique a ignorância da Lei, que é bastante divulgada através de livretes, encontros, seminários, cursos, etc. O que nos parece é que algumas entidades de atendimento são dirigidas por pessoas inescrupulosas e dotadas de mau caráter porque usam indefesas crianças ou adolescentes como forma de sustentação financeira. É fácil de se perceber à nossa frente o descaso, preocupante por sinal, na execução dos programas oficiais ou comunitários de auxilio e apoio à família. A impressão que se tem é que os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, que têm o dever de controlar a política de atendimento aos direitos da família, da criança e do adolescente, parecem não estar atentos para o que vem ocorrendo. É notório o aumento do número de abrigos disfarçados em “casas lares”, “casas de passagem” e outras denominações. Não se pode admitir que uma criança de tenra idade seja abrigada e por interesse pessoal de dirigente de entidade, permaneça nessa condição até que alcance a maioridade. A manutenção permanente de uma criança ou adolescente numa instituição é altamente danosa para o seu desenvolvimento, eis que numa entidade inexiste referencia familiar. Ali somente existem mães sociais, assim falando daquelas instituições legalmente estabelecidas e que possuem programas de atendimento. O que se pode imaginar das instituições clandestinas, aquelas que sequer se preocupam com a existência do Estatuto da Criança e do Adolescente?
É preciso que os Órgãos competentes descritos no art.95, exerçam o poder de fiscalização a si atribuídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, com uma atuação fiscalizadora mais direta sobre as entidades, cujos programas não tenham sido inscritos nos Conselhos Municipais ou mesmo nos Juizados da Infância e da Juventude. Os Juizados, o Ministério Público e mesmo os Conselhos Tutelares, em conjunto ou isoladamente, devem exigir o cumprimento da Lei, sob pena de afastamento dos dirigentes ou a interdição da entidade. Os padrões culturais pertinentes devem ser afastados a partir do momento em que a Lei é descumprida e os interesses das crianças e adolescentes comprometidos, espancando o direito à proteção integral. O poder de fiscalização deve ser exercido, como também devem os dirigentes das entidades ainda não regularizadas e que sejam bem intencionados (aqueles que querem exercer a solidariedade social) procurar os Conselhos Municipais objetivando a inclusão dos seus programas. Com isso, cada vez mais, as regras básicas, que orientam os procedimentos de integração de crianças e adolescentes em famílias substitutas, serão assimiladas pelas pessoas que operam nesse ramo do Direito da Criança e do Adolescente, de modo que o número de crianças e adolescentes institucionalizados seja cada vez menor e, induvidosamente, cada vez maior a quantidade daqueles em melhores condições de vida.
O que defendemos é a colocação em família substituta de forma ágil e célere, principalmente na modalidade de adoção, evitando-se assim a institucionalização desnecessária e que traga graves conseqüências ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.O Estatuto contempla a prioridade da manutenção dos vínculos familiares e a transitoriedade nos abrigos. Importante que as autoridades do setor promovam campanhas e atividades fiscalizadoras com o fim precípuo de disciplinar os atos praticados por alguns dirigentes de entidades, em respeito à Lei e à doutrina da proteção integral.
Paulo Roberto Luppi
Juiz da Vara da Infância e da Juventude de Vitória – ES